A mancha vermelha na história do Camboja

A mancha de sangue na história do Camboja

Observe com atenção a foto deste post. O que você vê nela? Um prédio antigo… Talvez uma escola? Não, essa tela de arame farpado na fachada não combina com uma escola… Certamente, não é o tipo de fotografia que você espera encontrar num site de viagens. Nem o tipo de história que frequenta as publicações ensolaradas dedicadas a promover o turismo. A história que a foto conta, porém, faz parte do passado recente do Camboja. Um país surpreendente, um povo pacífico e cordial. Durante cerca de quatro anos, porém, um inferno de sofrimento nas mãos de uma ditadura sanguinária. É uma mancha na história. A mancha de sangue na história do Camboja.

Pacificadores

As placas do Tuo Sleng Genocide Museum, em Phnom Penh, pedem aos turistas para que não tirem fotos. Embora seja possível encontrar dezenas delas na internet, o pedido está. Por respeito aos milhares de cambojanos presos, torturados e assassinados nesse local pelo regime sanguinário do Khmer Vermelho, entre 1976 e 1979. O número preciso não é conhecido. Estima-se que cerca de 20 mil pessoas tenham passado pelas salas de aula…

Espere, salas de aula? Sim. Infelizmente, não se trata de um engano.

As celas, originalmente, eram salas de aula. Os cinco prédios abrigavam a escola de Ensino Médio Tuol Svay Pray High School. Olhando pelo espelho, a transformação de uma escola em prisão era quase uma profecia a anunciar o que esperava o povo cambojano.

Na conversão para a Security Prison 21 (S-21), em abril de 1976, Toul Svay Pray virou Tuol Sleng. Traduzindo do khmer, o termo significa “Colina das Árvores Venenosas”. Eram sanguinários, os governantes, mas com veia poética. Temos de admitir. E também cínicos: a tradução do nome da polícia secreta do regime, Santebal, é “pacificadores.”

Assim como o S-21, haviam outros centros de detenção e interrogatórios espalhados pelo país. O número, novamente, é uma estimativa. Entre 150 e 196.

A mancha de sangue na história do Camboja

Os primeiros detentos levados para a S-21 eram pessoas que o regime de Pol Pot considerava inimigas. Soldados das forças leais ao primeiro-ministro deposto e autoridades do governo anterior. Rapidamente, porém, a lista cresceu para incluir acadêmicos, professores, médicos, estudantes, engenheiros, operários, monges…

Qualquer um com estudo suficiente para questionar o regime era preso. Mesmo que não o estivesse questionando efetivamente. Há relatos de pessoas presas apenas por usar óculos, afinal, esse é um acessório usado apenas por intelectuais, não é mesmo?

Paranóia

A paranóia cresceu em seguida para atingir os quadros do próprio Khmer Vermelho. É um movimento clássico nas ditaduras. O temor ao inimigo interno. (Alguém ouviu esse termo por aí recentemente, numa tal eleição nos Estados Unidos?)

Não demorou para que ativistas do próprio movimento e seus familiares enfretassem acusações de espionagem e traição.

Nem mesmo lideranças de alta posição escaparam. Hu Nim, por exemplo, era um dos intelectuais da doutrina e lutava ao lado do Khmer desde os anos 1960. Enfrentou a prisão, tortura e executação na S-21 em 1977. Teve como colega de cárcere naquele mesmo ano Khoy Tuon, membro do Comitê Central e Ministro das Finanças. Vorn Vet era vice-primeiro ministro de Economia e padrinho da indicação de Kang Kek Iew para o comando da Santebal. Caiu em desgraça, porém, e morreu nas masmorras comandadas por seu afilhado em 1978.

O regime que eles ajudaram a criar, ironicamente, se chamava Kampuchea Democrática do Khmer Vermelho (leia o texto sobre Phnom Penh para entender a origem do termo Kampuchea).

Tortura e fome

Nas salas de aula convertidas em câmaras de terror, os presos eram cruelmente torturados. O objetivo era obter confissões de traição e a delação de outros traídores. Muitos morriam nas sessões de tortura. A maoira dos sobreviventes, porém, condenados por traíção, morriam nos campos de extermínio. Os que permaneciam na S-21 definhavam por inanição causada pela falta de nutrição adequada.

Entre 1.000 e 1.500 presos coabitavam ao mesmo tempo as celas da S-21, em cubículos construídos de maneira improvisada com blocos e tijolos no interior das antigas salas de aula. Não havia condições para higiene pessoal.

O arame farpado na única imagem que registramos na visita ao museu foi instalado depois que os presos começaram a se jogar dos andares superiores em tentativas desesperadas de suicídio. A morte era a única fuga possível. O Khmer Vermelho queria que eles morressem, mas lhes negava o direito de tirar a própria a vida.

Libertação

Os anos de terror do S-21 acabaram em 1979, com a invasão do Camboja pelas tropas da República Socialista do Vietnã. Era o início da guerra entre Vietnã e Camboja. Os comunistas vietnamitas tinham apoio da União Soviética; os cambojanos, de chineses e, vejam a ironia, de norte-americanos.

Pol Pot era maoísta e tentou reproduzir a revolução cultural chinesa em seu país. Estimativas indicam que entre 1975 e 1979, período em que ele esteve à frente do Camboja, entre 1,5 milhão e 2 milhões de cambojanos morreram assassinados. Na época em que ele assumiu o poder, o país tinha 8 milhões de habitantes.

O Khmer Vermelho caiu em 1979, mas a guerra civil continuou. Pol Pot se refugiu na Tailândia. Inacreditavelmente, a ONU continou a reconhecê-lo como governo oficial. Os combates se estenderam por mais uma década. O Vietnã só deixaria o Camboja, sob pressão internacional, em 1989. O primeiro acordo de paz entre os diferentes grupos que queriam tomar o poder, porém, foi assinado apenas em 1990.

Punições

Pol Pot foi condenado à prisão perpétua pelos assassinatos perpetrados por seu regime, mas cumpriu a pena em prisão domiciliar. Ele morreu em 1998 de ataque do coração. Algumas versões dão conta de que teria se suicidado, mas isso nunca foi confirmado. Negou até o fim que tivesse ordenado os massacres.

Kang Kek Iew, o comandante da Santebal e da S-21, foi condenado à prisão perpétua em 2007 por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Morreu em 2020, vítima de uma doença pulmonar obstrutiva durante a epidemia de Covid-19.

Os assassinos se foram, mas não o “legado” deles. A mancha de sangue na história do Camboja jamais será apagada. É bom que assim seja. Apenas o conhecimento sobre o passado nos salvará de reviver a barbárie no futuro.

Planeje a sua visita

  • O Tuo Sleng Genocide Museum fica na rua 113, em Phnom Penh. Abre todos os dias, de 8h às 17h.
  • A entrada para estrangeiros custa US$ 5. O caixa aceita moeda americana.
  • Há guias de áudio disponíveis por US$ 5 para estrangeiros.
  • O clima da visita é pesado. Alguma salas apresentam fotos de pessoas mortas em condições de subnutrição. Há também displays com restos de ossos e crânios humanos.

Comments

2 respostas para “A mancha de sangue na história do Camboja”

  1. […] – A mancha de sangue na história do Camboja […]

  2. […] aconteceu com quase todas as tradições artísticas do Camboja, a “revolução cultural” do Khmer Vermelho entre 1975 e 1979 também ameaçou o tear da seda. Pol Pot queria erradicar “tradições decadentes” para […]